terça-feira, 8 de junho de 2010

"Entre tapas e beijos", eu e Brizola, Brizola e eu

Este artigo foi publicado no Observatório da Imprensa à época da morte de Leonel Brizola.
LEONEL BRIZOLA (1922-2004)
Entre tapas e beijos
Por Paulo Cezar Guimarães em 29/6/2004

Uma figuraça! Se é que se pode rotular uma autoridade com esse adjetivo sem parecer desrespeitoso.

Fui repórter do Globo responsável pela cobertura do Palácio Guanabara durante o primeiro governo Brizola e me diverti muito. Me aborreci também. Mas me diverti mais. Logo nos primeiros dias de governo, Brizola decidiu adotar uma forma de trabalho que seria uma rotina no seu dia-a-dia: fazer reuniões fora do palácio, de preferência em churrascarias, em especial numa de Ipanema. Levava todo mundo para lá e fazia questão que experimentassem a maminha de alcatra, uma das especialidades da casa. Certa vez, não sossegou até convencer um chefe de Estado vegetariano, de um país da África, a provar uma fatia da suculenta e sangrenta carne. Tudo isso utilizando-se apenas de gestos. Brizola era um notório monoglota, apesar de ter vivido muitos anos fora do Brasil.

Era centralizador, sim. Não dava muita bola para a maioria dos seus secretários e, principalmente, para a sua curiosa bancada na Assembléia Legislativa. Pressionado por alguns parlamentares, decidiu receber os políticos em um almoço no Palácio Guanabara. A pauta de conversas era grande: um melhor entrosamento e maior entendimento entre o Legislativo e o Executivo, a coligação entre o PDT e o PMDB com vistas à eleição de 1986 e a interiorização do acordo. Os deputados, que antes do encontro disseram aos repórteres que "iriam fazer e acontecer", ao final, ficaram "pianinhos", como se dizia antigamente. Nada foi veiculado sobre a reunião. Um deles chegou a dizer: "Não houve novidades. Nós comemos um franguinho, um arroz à grega e uma batatinha bem coradinha". No dia seguinte, O Globo divulgou os diálogos inusitados entre os parlamentares com o título: "PDT almoça frango e batatinha com Brizola".


Viajava para o exterior sem informar aos seus assessores diretos, que muitas vezes tomavam conhecimento por meio de bilhetes ou do Diário Oficial, em razão do pedido obrigatório de licença que tinha que ser encaminhado à Assembléia Legislativa. Freqüentemente utilizava o Palácio Laranjeiras para evitar o contato com manifestantes e bajuladores que o assediavam diariamente no Palácio Guanabara. Uma vez foi surpreendido por um grupo de estudantes e funcionários da Proderj, que saíram do Guanabara e foram para o Laranjeiras fazer reivindicações. Aliás, ao contrário de outros governantes que o antecederam ou o sucederam, não morava no Palácio Laranjeiras, residência oficial do governador do estado do Rio de Janeiro. Preferia ficar em seu apartamento da Avenida Atlântica, em Copacabana, onde realizava muitos de seus despachos com seus auxiliares de confiança.


"Posso ler?"


Desde o slogan lembrado até hoje (principalmente por dona Maria Tereza Goulart) "cunhado não é parente, Brizola pra presidente", no início dos anos 1960, era lançador de frases pitorescas, geralmente com o recurso de comparações imaginosas e muitas vezes procurando atingir alguém com uma estocada irônica. Como da vez em que lançou suspeita sobre alguns setores da oposição de estarem tentando desestabilizar o seu governo: "Isso que está aí tem olho de jacaré e boca de jacaré. Como não vai ser um jacaré?"


Famoso por pontuar suas frases com "não é verdade" e "rigorosamente", criou a expressão "socialismo moreno" e foi eleito com o slogan "Brizola na cabeça". Antes de tomar posse, anunciou: "Não estranhem, não vou ser a rainha da Inglaterra". Lula, a quem chamou um dia de "sapo barbudo", e o PT também foram vítimas de suas estocadas durante uma greve: "Isso é coisa desses barbudinhos de óculos redondos que têm a geladeira cheia na casa da mamãe, do papai ou da titia".


Tinha uma relação mais de tapas que de beijos com a imprensa. Não gostava muito de dar entrevistas para a televisão, usava pouco o rádio nas conversas com os repórteres. Preferia ficar longas e intermináveis horas com o pessoal dos jornais. Queixava-se muito da cobertura jornalística do seu governo e de algumas perguntas que considerava comprometedoras. Uma vez reagiu a um questionamento de um repórter: "A tua pergunta até parece um destaque do editorial de ontem do teu jornal". E acrescentou: "Viste como há falha mental aí? Tu não andaste distribuindo prospectos convidando para passeatas?"


Saí do Globo para trabalhar em uma empresa multinacional e dar aulas de jornalismo numa faculdade. Deixei de ter contato com ele. Uma vez, fiz um pequeno teste com alunos de uma de minhas turmas com a seguinte pergunta: "O que vocês acham da cobertura que a imprensa faz do governo Brizola?". A maioria considerava a cobertura "tendenciosa". Comentei com um amigo jornalista e não sei como a informação chegou a ele, por intermédio de seu assessor de muitos anos, o saudoso Carlos Contursi.


Brizola me chamou em sua casa para ler os textos dos alunos. Interrompeu uma reunião com seu secretariado e ficou mais de uma hora envolvido com folhas e folhas de papel almaço escritas pelos estudantes. Chegou a me pedir para divulgar os textos em um de seus famosos "tijolaços", publicados freqüentemente nos jornais. Não concordei. Ele voltou atrás. "Tens razão. Mas posso ler todos?".


Leu todos os 50 e poucos textos manuscritos por alunos. Muitos criticavam asperamente o seu governo, alguns com fortes críticas pessoais. Eu ficava constrangido; ele ria.


Nunca mais vi Leonel Brizola de perto.

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